sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Planeta dos Macacos

Quando o figurão de voz rouca anunciou a sentença em cadeia nacional, o mundo inteiro comemorou. Ou o que havia restado dele. Nesse ponto o mundo já havia se transformado em um cenário apocalíptico, era o primeiro diagnóstico com o qual todas as religiões concordavam. Um fato inédito desde o surgimento da espécie mais contraditória que já existiu.

Não há muito o que dizer do homem porque, apesar de terem demorado a admitir, nada se conhece a seu respeito. Sabe-se que o cérebro humano tem dois hemisférios, ligados pelo corpo caloso. Mas isso não significa nada. Sabe-se que a pele é o maior órgão do corpo humano. Mas isso também não significa nada. Sabe-se que os seres humanos e os chimpanzés têm 98% dos genes em comum. Mas isso significa menos ainda. O que importa mesmo são os 2%. Malditos 2%. Se não fosse por eles, o mundo ainda estaria em pé.

O grande problema foi que demoraram demais a descobrir para que serviam os tais 2%. Quando os chimpanzés começaram a resolver enigmas matemáticos e estudar espécies inferiores, já era tarde. Os artistas haviam dominado o mundo. Semanas depois, estudando cérebros dessa espécie singular, os cientistas descobriram que o que sobrava de 2% neles, faltava dos 98%. Era uma divisão simples, 1% destinado à sua arte e 1% destinado ao seu ego.

O mundo se tornou uma cópia fiel de um quadro de Picasso, e isso não no sentido figurado. Aliás, em sentido algum. Na lógica de um artista só havia um critério de avaliação de uma obra: se o autor havia sido ele ou não. E foi com essa tática de julgamento e humilhação que eles quase superaram as pessoas normais e se tornaram a raça dominante. Isso até a última reunião de países, onde o presidente da ONU decretou o extermínio de todos os artistas.

Os matemáticos comemoraram com pulinhos esquizofrênicos e os professores distribuindo boas notas à rodo, mas ninguém ousou fazer um brinde como pretexto para se encher de álcool. Isso era coisa de artista.

“Coisa de artista” passou a ser uma expressão cada vez mais rara, assim como os próprios artistas. Os que não foram capturados de início presentearam a si mesmos com mortes, por assim dizer, artísticas. Alguns pintaram seus corpos até que não houvesse um póro livre da asfixia, outros derreteram seus rostos com ácido e aproveitaram os últimos momentos para moldá-los ao seu bel prazer e, por último, havia aqueles que empalhavam uns aos outros.

O planeta-arte se transformou em um ateliê de corpos e a raça humana finalmente pôde voltar aos seus ábacos, dicionários e sistemas binários. Mas, como já foi dito, não há nada mais contraditório que o ser humano. Eles não conseguiram viver em paz. Decidiram guerrear com a espécie semelhante que, eliminados os 2% de diferença genética, passou a ser os chimpanzés. Ganhou a espécie com maior senso ético e moral.

Foi assim que os chimpanzés dominaram o mundo. Eliminaram todos os humanos e se tornaram a espécie mais inteligente, perdendo para os golfinhos por apenas 2%. Mas não seria assim por muito tempo. Um dia, um chimpanzé descobriu uma velha lata de tinta, molhou o dedo e esfregou em uma árvore. Estava dada a sentença de extinção da raça.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Apenas mais um jornal

Era uma vez um jornal. Em cima dele, um teto empoeirado e à sua frente duas grandes olheiras. Era um belo jornal, o mais belo em muitos meses, diriam alguns. Isso devido à imagem que vinha estampada na capa. Os repórteres a chamariam de “furo” e o assassino de “vítima” . Mas ao jornal nada disso interessava. A única opinião que importava para ele era a daquela mulher desconhecida por trás das olheiras. E a reação dela foi bem diferente das esperadas.

Jornais vivem de expectativas e para ele, aquilo não era nada bom. Alguns jornais até chegavam a voltar para a banca, mas para a mesa do editor chefe, jamais.

- Minha senhora. Esse garoto é filho de uma deputada e foi cruelmente assassinado por um fugitivo perigoso. Uma bala só, certeira. Um absurdo. É por isso que ele está na capa do nosso jornal. Porque onde houver alguma injustiça contra a sociedade...

De resto, o jornal só ouviu “blá blá blá”. Já conhecia muito bem o papo do editor, estava todo estampado com ele. Queria mesmo era ouvir o que a mulher das olheiras tinha a dizer.

- Injustiça? Injustiça é colocar no jornal a foto do garoto morto em vez da foto do meu filho. Isso aí é caso perdido. Morreu, está morto. Meu filho está perdido por aí, na mão de algum safado. Já esse garoto, todo mundo sabe onde está.

Nada daquilo fazia sentido para o jornal. Para ele, só existia um filho, o da deputada. E aquela mulher não se parecia com a deputada.

É possível que o jornal tenha ficado entretido demais com a mulher das olheiras, porque só agora via que atrás dela vinha um batalhão de pessoas. Elas carregavam cartazes com a foto de outro garoto. Segundo a mulher das olheiras, haviam utilizado a foto errada na sua capa e, graças a isso, ele era um inútil.

Isso abalou a auto-confiança do jornal. Ele mal ouviu o que falavam depois. Só conseguia pensar que entre milhares de jornais, fora o único que não cumprira sua função. Agora estava ali novamente, embaixo do teto empoeirado, esquecido no canto da mesa, enquanto aquelas pessoas se reuniam em volta de uma caixa de leite. Na falta de um jornal, foi o que puderam oferecer à mulher das olheiras.

Ao jornal parecia óbvio que uma caixa de leite não valia como jornal. Enquanto estava nas prateleiras, conheceu inúmeros leitores de jornal, mas nenhum leitor de caixa de leite. Mas a mulher das olheiras só foi perceber isso muito tempo depois, quando mais e mais caixas chegavam e não havia ninguém para tomar aquele leite.

O leite azedou, assim como a mulher das olheiras. Leite tem prazo, esperança também. E logo a mulher das olheiras desabou. As olheiras finalmente se encontraram com o jornal, misturando lágrimas grossas com tinta rala. Aquela poça, que tingia o sorriso do filho da deputada de negro marcou o encontro final do que restava de um jornal com o que restou de uma mulher.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Che Brasilino

Um dia Brasilino acordou inconformado. Foi assim, sem muita explicação. A vida não piorara de repente, já era desse jeito desde que Brasilino era Brasilino. Mas hoje, apenas hoje, Brasilino não era ele.

- Mulher, por que nossos filhos passam fome?
- Porque são muitos. Foi você que quis ter tantos filhos. Um time de futebol, lembra? Doze jogadores.
- Eles não são jogadores. Eles têm lombriga.
- Isso aí é porque estão passando fome, Brasilino.
- Merda de idéia. O Pelé aparece na TV botando caramiola na cabeça da gente e dá nisso.
- Mata ele.
- E como é que eu vou matar o Pelé? Ele tem segurança, mulher.
- Mata o segurança e depois mata o Pelé. Simples.
- Mas e se ele me der um tiro antes? Porque já viu, né. O cara é profissional.
- Então primeiro você mata o cara do armazém que vende balas de revolver. Quero ver esse segurança te acertar se a arma estiver vazia.

O plano não lhe pareceu ruim, mas milagrosamente falhou. Brasilino não conseguiu matar o Pelé. Tudo foi por água a baixo quando o vizinho viu a mão do entregador do armazém brotando do jardim.

Brasilino foi parar na cadeia e na capa dos jornais. De lá, contou sua vida a um repórter que escreveu a auto-biografia do Brasilino (isso mesmo: auto). O livro esgotou em todas as lojas, assim como a caneca, a camiseta e o caderno escolar. Até um grill do Brasilino foi lançado, um com um buraquinho de escoamento que, segundo o comercial, era um tiro na gordura.

Emocionado com a saga de Brasilino, um conceituado treinador de futebol se ofereceu para dar aulas aos seus filhos. Logo, metade deles foi parar em times europeus. Os que ficaram também não se deram mal. Começaram a dar palestras de como vencer na vida, sem as quais jamais venceriam eles mesmos.

Brasilino viveu bem em condicional até o dia em que foi levou um tiro na cabeça. A Associação dos Entregadores de Armazéns assumiu a autoria do atentado. Isso causou revolta na população, que se armou, tomou todos os estabelecimentos comerciais e depois o governo.

Brasilino se tornou um mito. Ele pode não estar mais vivo, mas a sua mensagem jamais morrerá. Ela pode ser resumida em apenas uma frase, mas não cabe repeti-la aqui. Todo mundo já sabe qual é mesmo.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Tatuagem Literária

- Veio fazer uma tatuagem também?
- Sim. Vim tatuar uma merda no cóccix.
- Posso ver o desenho?
- Sim. Aqui está.
- Mas isso é uma merda.
- Sim. Vou tatuá-la no cóccix, já disse.
- Minha senhora, a senhora não pode fazer isso. Esse é o tipo de coisa que precisa de um motivo. Não dá pra sair tatuando uma coisa dessas num lugar desses.
- Mas a merda significa muito para mim. A merda representa um ciclo que todos crêem ter chegado ao fim. Na visão de muitos, ela é resto, mas na verdade, merda é o começo. Merda aduba o solo e recomeça um novo ciclo. Merda é vida. Tudo é merda.
- Mas esse tipo de metáfora é totalmente falível. Confie em mim. Eu sou escritor, sei o que estou falando. Quer uma metáfora boa? Uma flor. Flores também têm ciclo, morrem, adubam o solo, essa coisa toda. Bota uma flor aí que a senhora não vai se arrepender.
- Se o senhor diz que é melhor...
- Sim. Vai por mim.
- Tá bom então. Moço, quero tatuar uma flor no cóccix.
- Pois não, senhora. E o senhor, vai querer que tatuagem?
- Uma merda por favor. Na nuca. A senhora faria a gentileza de me ceder o desenho?

terça-feira, 4 de setembro de 2007

O.A.

Na primeira vez que resolvi experimentar, me pareceu boa idéia. Era um amigo que estava oferecendo, e em amigo a gente deve confiar. Mesmo assim fiquei meio relutante. Fui sorvendo aos poucos, primeiro com cautela, depois, como a única poça em quilômetros de deserto.
No começo parecia grande coisa e, como toda grande coisa, caiu na rotina. Se tornou indispensável como geladeira, pasta de dente e novela das oito. Era como sentar no canto do restaurante, perto da parede, naquela mesa em que você se sente seguro. Mas por trás de tudo havia uma certeza: eu estava vulnerável. Havia pulado do abismo e me iludia que aquilo era a corda que me segurava na beirada. Era hora de procurar ajuda.
- O primeiro passo...
- Isso, diga, diga qual é o primeiro passo – minhas mãos suavam, estava prestes a me inebriar de novo.
- O primeiro passo é você quem tem que decidir.
Parecia injusto. Eu deveria depender de mim mesma. Só o que me arrumaram foram dois tampões de ouvido, para impedir que a substância penetrasse na minha cabeça. Tudo se tornou insuficiente para mim. Me recuperar do irrecuperável, esse era o desafio. Eu sabia que voltariam a me afrontar. E foi o que aconteceu. Assim que esse texto saiu, eu resisti em pedir, mas não demoraram a oferecer.
- Quer uma opinião?
- Não, obrigada. - O primeiro passo estava dado. Eu me libertara do vicio.