quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Sinal de fumaça

- Com licença, você poderia acender o cigarro?
- Pois não?
- Você poderia fazer a gentileza de acender o cigarro? Essa falta de fumaça no ambiente está me incomodando.
- Mas eu não quero acender o cigarro. Eu tenho o direito de não fumar.
- E eu tenho o direito de não que conviver com a sua falta de hábito.
- Que absurdo! Não existe nenhuma lei que me obrigue a acender o cigarro.
- E só por causa disso eu vou ter que sofrer os efeitos colaterais do seu não-fumo?
- E que efeitos são esses?
- Preconceito. Querida, não sei se você sabe, mas preconceito mata.
- Não vejo como o meu preconceito possa fazer tão mal a você.
- Só o seu não, mas o seu, o dela, o dele, o dele ali...
- E você prefere morrer de câncer no pulmão a morrer de preconceito?
- Mas é claro. Preconceito causa muito mais sofrimento. Primeiro acaba com o lado social do meu corpo, depois corrói a minha auto-estima e por fim causa automutilação. É esse o fim horrível que você quer?
- Não, mas ninguém aqui está com preconceito comigo.
- Mas comigo sim.
- Isso é problema seu.
- Ah, então você não quer acender o seu cigarro, EU sofro os efeitos colaterais disso e o problema é meu?
- Exatamente.
- É, tem gente que simplesmente não sabe viver em sociedade.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

A Casa

Desde que me conheço por gente a casa de vovó está caindo. Construção temperamental, ela nunca quer ser consertada. Você arruma uma janela, ela bambeia o telhado e inunda o piso, você remenda o telhado e o piso apodrece. A primeira parte da casa a quebrar foi meu avô. Quebrou que não tinha mais jeito, não tinha outro que encaixasse, a casa ficou sem avô. Depois o cachorro espanou. Normal, estava passado demais. Vovó tampouco quis outro, essas coisas de velho: “não se faz mais Banzés como antigamente”. Daí em diante, a coisa só descambou. A geladeira caiu a mais de 30 anos e até hoje manca da perna esquerda. Mas não estragou como o papagaio. Esse sim não fala mais nada e não há peça de reposição que dê jeito. Modelo antigo, não se vende mais, dizem até que é proibido. O rádio e meu tio, assim como o papagaio, já não cantam. Ambos pifaram e, vez ou outra, soltam alguns chiados inaudíveis. Como eu disse, coisa de construção antiga. O encanamento já era e o orgulho também. Sem encanamento e sem orgulho próprio, todos tomam banho de caneca, ali mesmo no quintal de cimento quebrado, em uma bacia de metal torto. A casa não acha ruim. Era bem isso que ela queria, invocada, jogando rebocos na cabeça dos outros como se não houvesse problema. O fato é que ela não gosta de muita gente, então quase ninguém faz questão de entrar mais ali. Tudo cheira a velhos erros e a vida mofada. Para a vida da minha avó já não há remédio, foi corroída pelas beiradas, deixada em ruínas e largada lá para os anos subirem na carcaça. Mas, apesar de tudo, a casa resiste, esperando que o tempo acabe com do único pilar que a mantém em pé. Afinal, é inevitável: não importa o quanto demore, um dia a casa cai.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Uso Capião

- Mãe, perdi meus miolos.
- Como assim perdeu seus miolos?
- Perdi, ué.
- Mas isso é impossível.
- Diga isso a eles quando os encontrar.
- Querido, olhe nos meus olhos e ouça bem:...AAAAAAH! Seus olhos estão transparentes, o que aconteceu?
- É porque não tem nada atrás. Já disse: perdi meus miolos.
- Pois temos que achá-los já.
- Como?
- Vamos refazer seus passos. Onde você esteve antes daqui?
- Huuum, no banheiro...
- Será que...?
- Não, não, eu só fui tomar banho.
- Ufa, menos mal. E antes?
- Antes eu estava ao computador.
- Ok, então vê se procura por lá enquanto eu vasculho o quarto.
- Mãe, achei.
- Cadê? Onde?
- Bem, na verdade não achei, mas acho que já sei o que aconteceu com eles. Olha esse e-mail que eu recebi:
“Caro usuário,
Informamos que iniciamos, a partir de hoje, um processo legal de digitalização de miolos. Devido ao desuso constante do bem em questão e à submissão total às idéias veiculadas pela internet, consideramos os seus miolos parte da reserva inoperante do nosso sistema de dados, pela lei de Uso Capião.
Att.,
WWW
- E agora?
- Agora eu não tenho miolos.
- E o que você consegue fazer sem miolos, meu filho?
- Tudo, menos pensar por conta própria.
- E como uma pessoa consegue viver sem pensar por conta própria?
- Não sei.
- Complicado.
- Pois é.
- Hum... E aí?
- E aí o que?
- Tá sentindo alguma diferença?
- Não, nenhuma. Talvez seja o caso de a gente esperar mais um pouco.
- Ok.
- Ok...
- E agora?
- Nada.
- Nadinha?
- Não. Acho que não vai fazer tanta falta assim.
- Pelo visto o melhor é a gente parar de ficar esperando e ir ver televisão.
- Ok, o que está passando de bom?
- Nada, só uma mensagem que fica rodando na tela: “Cara telespectadora, informamos que bla bla bla”.
- Bom, melhor que nada.
- É, melhor que nada.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Aquele que sou

Sabe quem eu sou? Sou aquele que sobe aos teus altos e desce em teus autos, sabe não? Aquele que te apara as pontas, que te acerta as contas e lhe consegue perdão. Eu mesmo. Ando por aí a esmo esperando seu chamado - nem que seja uma centelha - feito assim meio de esguelha, cochichado de lado.

Sou eu que te serro as grades, que te ponho em liberdade quando ninguém mais te confia. Te busco no lodo em que te amua, te jogo na boca da rua, mas comigo ninguém te trancafia. Eu sou salvação, falo mesmo, é assim que me chamo. Pois onde outros usam armas, a mim basta a palavra para que me declares amo.

Amo sim, amo o que sou. E cobro seus bens e sua vida, apenas isso, em troca do que faço. E se erras com outrem não julgo, se fogem de ti eu os caço. Sou o que você procura, na rua da amargura, aquele que salva você. Sou isso e tudo mais, desde as palavras banais: mãe, passei na OAB.

Carol Rosa

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Liquidação de Nextel

RRR. Oi? Heim? Fala, tô no ônibus. PIIIF. Claro, claro, to indo aí. Me espera. Saí de casa bem cedo só pra isso, peguei o ônibus das oito horas. PIIIF. Heim? OI-TO HO-RAS. OOOOOI-TO. RRR. É o pior horário. Lotadaço, não dá nem pra respirar. PIIIIF. Repete, a gorda do meu lado ta roncando. PIIIF. Repete de novo que agora ela tá reclamando no meu ouvido. Gorda é foda. RRR. PIIIF. É FODA, não EU FODO. Nem ferrando, tá louco? Se é pra botar pra foder, pego logo a gostosa da frente. Aliás, to quase lá. PIIIF. É, ralando tudo aqui. E agora ela deu pra olhar pra trás, acho que tá gostando. Se o viado do motorista continuar a fazer curva fechada, logo logo ela está é embaixo de mim. RRR. PIIIF. Pois é. Me lembrou uma mulher aí com quem eu ando saindo. PIIF. Não, você não conhece. PIIF. Não conhece, juro. PIIIF. Tá bom, vou te contar uma coisa. Mas você sabe que eu te considero pra caramba, né? PIIIF. RRR. Tô comendo sua mulher. PIIIF. TÔ COMENDO SUA MULHER. RRR. PIIIF. Não, nem toda vez, imagina. Às vezes eu levo ela no swing e a gente troca. PIIF. É, troca. De mulher. PIIIF. É, a sua mulher. PIIIF. Como assim cancelado? Eu já estou no ônibus. RR. PIIF. Pô, camarada. Saio cedo de casa, pego um ônibus cheio de nordestino piolhento, ardo minhas hemorróidas nesse banco, agüento o cecê do babaca ao lado, ouço os gritos dessa criança catarrenta na minha frente e você cancela tudo por causa de mulher? RRR. PIIIF. Tira do viva voz. PIIIF. TIRA DO VIVA VOZ. PIIIF. Isso, tira logo. RRR. PIIIF. Obrigado. Só queria dizer que nossa amizade acabou, mas odeio expor minha intimidade.

Carol Rosa

Segredo

Posso te contar um segredo? Eu tenho medo do escuro. Não sei o motivo. Sei que não marco ponto no breu, nem confio em estrelas que se esvaem sem aviso prévio. Não quero fazer parte de algo que não sei o que é, quem está, ou como. Sabe-se lá por que. Uma teoria, produto das tremedeiras e suores noturnos, é a de que absorvo luz por osmose. Afinal, buracos – não me cabe enumerá-los por questão de pudor – tenho aos montes. Mas não creio que luzes entrando pela minha traseira possam causar iluminação interior. Não. Eu gosto sim do escuro da noite, só não quero fazer parte dele. E não são pelos fantasmas também. Não me amedronta alma penada que se valha de luz apagada para assombrar os vivos. Tampouco larápios pouco vivos, que condicionam seu sucesso a um mero interruptor. Correntes, já não guardamos em casa desde o dia em que minha família libertou seu último escravo. E esse, pobre coitado, nem chegou a conhecer a luz elétrica para fazer proveito de sua ausência na danação eterna. Parece lógico que é ilógico sentir-se assim, mas sinto, e pronto, e ponto. O escuro, essa entidade quase onipresente, tão presente e ausente de tudo o mais. É isso que me bota as pernas bambas e os olhos vidrados, buscando um ponto, único que seja, que me arranque do preto-azulado, malgrado, maltratante, andante, que é grande sem sequer ser. Nada é o que é ou deixa de ser o escuro. É por isso que peço, peço não, impeço que você apague essa lanterna. Não o convide para cá. Ou apague a lanterna, mas acenda as luzes e me tire do escuro, nos tire do ausente, nos faça presente. É isso que quero. Veremos tudo no claro, o filme se fará mais claro, o projetista entenderá. E parem de jogar pipoca, a luz está apagada, mas ainda sinto. Juro. Está tudo muito escuro, eu não entendo o que há.

Carol Rosa

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Bip Bop

A gente ouve o que se ouve.
A gente vê o que se vê.
Na gente há o que se houve.
A gente lê o que se lê.

A gente come o que se come.
A gente pede o que se pede.
A gente pede o que se come.
A gente come o que se pede.

A gente lambe o que se lambe.
A gente esconde mas se lambe.
A gente lambe o que se esconde.
A gente lambe e se esconde.

A gente fala o que se fala.
A gente fala o que se escreve.
A gente escreve o que se fala.
A gente fala e reescreve.

A gente pensa o que se pensa.
A gente pensa que entende.
A gente entende que se pensa.
A gente pensa e não entende.