quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Boi-da-cara-preta

- Mãe, deixa a luz acesa? Eu estou com medo do futuro.

- Outra vez? Mas eu já lhe disse que o futuro não existe.

- Existe sim. É que ele não está se mostrando agora, mas é só eu pegar no sono que ele aparece para acabar com algum sonho meu.

- Querido, o futuro não pode te pegar. Até chegar em você, ele já virou passado. E o passado não pode acabar com os seus sonhos. Aliás, graças a ele, a maioria desses sonhos nem chega a existir. E do passado não dá mesmo para fugir. Por mais que você corra, ele sempre acaba te pegando. Aí já era. Você só vai diminuir, enquanto o passado cresce a cada segundo. Até que um dia ele fica tão grande e assustador que acaba te sufocando.

- Mãe?

- Sim, querido.

- Pode deixar a luz do seu quarto acesa. Eu não me incomodo.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Ladrão

Eu não sou ladrão, não senhor. Não ando por aí de terno, gravata e valise na mão. Nem limpo eu ando. Ladrão anda limpo, porque trabalho, trabalho mesmo suja. Trabalho não tem nada a ver com roupa engomada, creme para as mãos, sapato lustrado. E ladrão é aquele cara que não tem mão calejada, respingo de tinta e suor na testa. Isso tudo eu tenho. Se quiser, tire uma foto minha, leve minha roupa como evidência.

Pode checar aí na gravação que eu não falo direito. Isso lá é coisa de ladrão? Ladrão que é ladrão compra educação. Só não exercita com a gente. Mas fala errado na frente de ladrão pra ver. Ele tira sarro do senhor. Isso se ele enxergar o senhor, porque ladrão é meio míope. Só enxerga números – de cédulas, de contas, de eleitores – só números. Eu nem contar sei. Como é que eu vou ser ladrão?

Se o senhor precisar de alguém que confirme que eu sou trabalhador, é só ir lá no bar do Luizão e perguntar para os meus amigos. Porque, o senhor sabe, ladrão não tem amigo. Ladrão só anda com ladrão. É pra caso alguém diga que ali tem ladrão, um apontar o outro. E o pior é que quando gritam “pega ladrão”, é gente como eu que corre.

Eu corro mesmo é porque ladrão adora dizer que a gente é ladrão. Eu pelo menos não sou. E nem é por convicção. É por falta de oportunidade. É o povo que escolhe o ladrão e ninguém me elegeu para isso. É uma pena decepcioná-lo, mas não vai ser o senhor que vai capturar um ladrão. De ladrão escolhido pela gente, só a gente pode cuidar. E se ladrão não liga pra gente, a gente liga menos ainda pra ladrão. Afinal, dá menos trabalho criar um ladrão a cada quatro anos que destruir um por dia. E, no final das contas, não faz mesmo sentido. Pra que tirar a autorização para roubar se foi a gente mesmo que fez o ladrão?

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Que atire a primeira bala

Mal sabiam eles quantas vidas seus risos custariam. Mal sabiam eles que sua vida estava nas mãos dos risíveis. E sua morte também.

Os risos vinham a galope, adiantados ou atrasados. Tinha até vale-riso. Coisa da modernidade, bem simples. Minha mãe gritando: Filho, não esqueça seus tentáculos. Pronto, vale-riso. Nem saí com os tentáculos ainda e já sei que vão rir de mim. É como injeção, dói por antecedência. Deveria chamar vale-lágrimas. Isso é, se as minhas valessem alguma coisa.

Mãe, eu não quero sair com os tentáculos. Mas não tinha jeito, eram ordens médicas. E para a minha mãe, só havia uma autoridade acima do médico. Pensando bem, não havia nenhuma. Se o médico disse tentáculos, tentáculos serão. E tentáculos foram. Roxos, gosmentos e esburacados como todo tentáculo.

Encaixava eles nos buracos extras do meu corpo e me preparava para aquilo que ia me marcar para resto da vida: risos. Os tentáculos me tornavam invisível, mas não do jeito que eu queria ser. Ali, eu não era eu e nem era ninguém. Eu era o garoto dos tentáculos.

Tentei rir com eles, fingir que também via graça em tentáculos. Os risos aumentaram ainda mais. Então, tentei fingir que não ouvia risos, que não havia tentáculos. Os risos se transformaram em gargalhadas. Subi no palco, tomei o microfone de assalto e disse que era igual a eles. Só que com tentáculos. As gargalhadas se tornaram crises fulminantes. Todos rolavam no chão, à beira de um ataque. Não tive escolha. Abri os tentáculos e fiz com que mexessem. Primeiro descontroladamente, depois em movimentos circulares e, para finalizar, dançando macarena. O ataque aconteceu. Riram tanto que caíram duros no chão.

Com um sorriso no rosto, estendi a mão à palmatória. Literalmente. Apanhei o bilhete que me estendiam e fui para casa tranquilamente. Entreguei o bilhete à minha mãe como quem exibe uma medalha. Ela se assustou. Nota “D” em comportamento e uma semana de suspensão? Não tinha escolha, mamãe. Tive que matá-los.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Sistema Único de Putaria

Não é todo dia que a gente assume que foi injusta com o Estado. Com tanta roubalheira, tanta corrupção, pensei que estava perdida quando vieram me buscar. Fiquei até com medo daquele homenzinho de pasta na mão: A senhora vem com a gente. Por quê? A senhora não é profissional do sexo? Sou. Pois então, a senhora agora pertence ao Estado.

Era só o que me faltava, estatizaram as putas. Os socio-capitalistas sobem ao poder e é a gente que paga o pato. Mas patos eram eles se achavam que a gente ia se contentar com pouco. Se fosse pra ver pinto de graça, ficava logo com o que cortaram de mim.

Cheguei lá com a língua em riste e o salto armado, pronta para dar escarcéu. Vocês estão muito enganados se pensam que vão me colocar nessa...mansão maravilhosa. É aqui que eu vou morar? Era. Morar não, desfrutar. Veja só, e ainda tem gente que defende a privatização. Quando eu era dona do meu corpo, só vendia pra vagabundo fedorento. Agora, só vinha deputado rico com colônia francesa.

Em pouco tempo eu ganhei carro, roupas, jóias e, como não poderia faltar, gonorréia. Nada que me levasse pro necrotério. Nada que me poupasse do posto de saúde e suas infinitas filas. Mas eu era prevenida e tratei de levar um banquinho dobrável. Banquinho que, diga-se de passagem, nem cheguei a tirar da sacola. Assim que cheguei lá, fui direto para a sala do médico. Fui tratada como uma verdadeira rainha. Ele me implantou um chip que, além de curar a gonorréia, prevenia qualquer DST que eu pudesse ter.

Saí de lá com o sorriso rasgando a cara. Me despedi e quando estava cruzando a porta, um som inesperado anunciou minha saída. Era o alarme. Logo, dois gorilas me agarraram pelo braço e me levaram para dentro. A senhora não pagou a conta, disseram. Pagar a conta? Mas que absurdo, O SUS é público. Foi. Foi? Foi, pretérito perfeito. Ou melhor, pretérito imperfeito, presente perfeito. Só o Novo SUS cuida de você e da sua família como ninguém.

Bem que eu imaginei que esse negócio de estatizar puta tinha um preço. Não dá pra sustentar tanta coisa se não vender pelo menos uma. Se for ver, até que saiu barato. O SUS não valia grande coisa mesmo. Agora o serviço era caro, mas pelo menos funcionava direito. Por isso não hesitei em tirar o cheque da carteira. Vai fazer à vista? - perguntou a funcionária. Claro – respondi – Alguém tem que pagar a conta.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Made in Brazil

Nós não andamos por aí pelados. Para falar a verdade, nós nem andamos por aí. Nós dirigimos por aí. Usamos roupas e carros. De marca. E nem dá para questionar a qualidade, porque nós compramos de vocês.

Nós também compramos seus princípios, e pagamos cada centavo. Então, se isso esclarece a sua dúvida: não, nós não trepamos indiscriminadamente. Nossos pais não trepavam indiscriminadamente, nossos avós não trepavam indiscriminadamente e nossos bisavós...bem, desses aí não dá para falar muita coisa. Só conheceram a civilidade de verdade quando vocês chegaram aqui.

Mas não foi só isso que aprendemos com vocês. Seus livros também invadiram nossas estantes e seus hábitos, nosso modo de vida. Portanto, pense duas vezes antes de dizer que levamos vida fácil pois, imitando vocês, descobrimos o quão complicada ela deve ser.

Nós não somos diferentes de vocês. E se domamos nossos instintos e apagamos nossa cultura só para provar isso, não é qualquer gringo de merda que vai dizer que em 500 anos não progredimos nada. Há meio milênio, vivíamos para aprender. Hoje, somos ensinados a viver. Isso, caro amigo, se chama progresso.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Plasma

Plas-ma. Anota aí pra senhora não esquecer. Se bem que não dá pra esquecer um plasma, não é mesmo? Pelo menos é o que diz todo mundo que vinha aqui. Pareciam que estavam tocando em Deus. Mas é melhor nem tocar, porque a senhora conhece essas frescuras de tecnologia. É pra ver mesmo. Dava pra ficar o dia inteiro na frente dele. As vizinhas, se pudessem, não saíam daqui. E era um pedido atrás do outro.

Bota no bebê da Jolie. O Gugu vai dar dinheiro pra um menino sem braço. Ora, mas toda semana o Gugu dá dinheiro pra um menino sem alguma coisa. Domingo retrasado foi pra um sem casa e no seguinte pra um sem cérebro. Se aparecer algum sem costeletas, ainda assim vai ter gente querendo assistir. Eu prefiro nem correr o risco. Deixo logo no pastor porque o que o pastor fala não se escreve. E eu nem sei escrever mesmo. Mas tenho uns olhos e uns ouvidos que até Deus duvida e sei ver quando a imagem é boa.

A senhora acredita que nem precisava de bombril na antena? Isso é que é tecnologia. Eu nem sabia mais o que fazer com os bombrils que tinha aqui. Peguei tudo e levei pra sala. Meu filho veio correndo, achando que eu era ignorante. Garoto burro. Não era pra pôr na antena, era pra limpar o plasma mesmo. Eu gosto das coisas assim, limpinhas e conservadas, pra durar bastante.

Mas vizinho...já viu né. É só ver que você está cuidando bem das coisas que tratam logo de pôr urucubaca. Meu plasma logo ficou todo arranhado. Já nem dava mais pra distinguir o pastor do encosto. E foi aí que a ficha caiu: encosto. Tinha encosto no meu plasma.

Liguei pro pastor e disse que precisava me livrar de um encosto. Uma mulher de voz metálica ordenou que eu desse um banho no encosto e mandasse ele embora. Ir ele foi, mas levou tudo consigo, imagem e som. Ficou só o plasma lá, sem pastor e sem encosto.

Mas ainda assim é o plasma mais bem cuidado do mundo. Todo mês eu lixo e dou uma nova demão de tinta pra conservar. A senhora quer ver? É normal que a senhora fique curiosa. Gente que ainda não está acostumada com modernidade que nem eu estou se surpreende mesmo. Dê uma passadinha aqui depois do sensu. E não esquece heim? É plas-ma.