Era uma vez um jornal. Em cima dele, um teto empoeirado e à sua frente duas grandes olheiras. Era um belo jornal, o mais belo em muitos meses, diriam alguns. Isso devido à imagem que vinha estampada na capa. Os repórteres a chamariam de “furo” e o assassino de “vítima” . Mas ao jornal nada disso interessava. A única opinião que importava para ele era a daquela mulher desconhecida por trás das olheiras. E a reação dela foi bem diferente das esperadas.
Jornais vivem de expectativas e para ele, aquilo não era nada bom. Alguns jornais até chegavam a voltar para a banca, mas para a mesa do editor chefe, jamais.
- Minha senhora. Esse garoto é filho de uma deputada e foi cruelmente assassinado por um fugitivo perigoso. Uma bala só, certeira. Um absurdo. É por isso que ele está na capa do nosso jornal. Porque onde houver alguma injustiça contra a sociedade...
De resto, o jornal só ouviu “blá blá blá”. Já conhecia muito bem o papo do editor, estava todo estampado com ele. Queria mesmo era ouvir o que a mulher das olheiras tinha a dizer.
- Injustiça? Injustiça é colocar no jornal a foto do garoto morto em vez da foto do meu filho. Isso aí é caso perdido. Morreu, está morto. Meu filho está perdido por aí, na mão de algum safado. Já esse garoto, todo mundo sabe onde está.
Nada daquilo fazia sentido para o jornal. Para ele, só existia um filho, o da deputada. E aquela mulher não se parecia com a deputada.
É possível que o jornal tenha ficado entretido demais com a mulher das olheiras, porque só agora via que atrás dela vinha um batalhão de pessoas. Elas carregavam cartazes com a foto de outro garoto. Segundo a mulher das olheiras, haviam utilizado a foto errada na sua capa e, graças a isso, ele era um inútil.
Isso abalou a auto-confiança do jornal. Ele mal ouviu o que falavam depois. Só conseguia pensar que entre milhares de jornais, fora o único que não cumprira sua função. Agora estava ali novamente, embaixo do teto empoeirado, esquecido no canto da mesa, enquanto aquelas pessoas se reuniam em volta de uma caixa de leite. Na falta de um jornal, foi o que puderam oferecer à mulher das olheiras.
Ao jornal parecia óbvio que uma caixa de leite não valia como jornal. Enquanto estava nas prateleiras, conheceu inúmeros leitores de jornal, mas nenhum leitor de caixa de leite. Mas a mulher das olheiras só foi perceber isso muito tempo depois, quando mais e mais caixas chegavam e não havia ninguém para tomar aquele leite.
O leite azedou, assim como a mulher das olheiras. Leite tem prazo, esperança também. E logo a mulher das olheiras desabou. As olheiras finalmente se encontraram com o jornal, misturando lágrimas grossas com tinta rala. Aquela poça, que tingia o sorriso do filho da deputada de negro marcou o encontro final do que restava de um jornal com o que restou de uma mulher.
quinta-feira, 20 de setembro de 2007
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2 comentários:
Meus olhos estão cheios d´agua, na frente do computador...
Regina Romani: Nossa, Cá! Que bonito, amor. Se me dissessem, eu não acreditaria que era seu, nossa, amor, nossa!
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