quinta-feira, 19 de abril de 2007

Vadeco e a Arara Azul – Uma história de amor e traição

Sempre que João sentava naquele sofá vermelho rasgado, já sabia que não viria grande coisa. Mas ser amigo de Vadeco era isso mesmo: móveis velhos cheios de pulgas, café ralo, o inexpugnável cheiro de mofo e longas conversas que nunca chegavam a lugar nenhum. “Mas quem sabe essa chegue”, pensou João. Afinal, Vadeco havia lhe telefonado com a promessa de uma grande novidade.
Estavam agora um de frente para o outro. Vadeco mexia o nariz fazendo pular os óculos remendados, um tique que sempre precedia alguma de suas “grandes revelações”. João aguardou atento por alguns segundos o anúncio que veio sem cerimônias:

- Estou apaixonado por uma arara azul.

João sequer se perguntou se havia ouvido direito o que o amigo dissera. A gargalhada veio-lhe espontaneamente.

- Ora, não seja tolo, Vadeco. – respondeu assim que o riso cessou – Todo mundo é apaixonado por araras azuis.
- Você não está entendendo, João – retrucou Vadeco, impaciente – Eu não estou apaixonado PELAS araras azuis. Eu estou apaixonado por UMA arara azul. Quero me casar com ela, constituir família.
- Ah sim. E é correspondido ao menos?
- Creio que sim – respondeu Vadeco olhando ao longe, com um leve sorriso no rosto – Sempre que vou para o sítio ela está lá, se exibindo para mim. Às vezes foge quando eu chego perto, mas você sabe como são as fêmeas, adoram se fingir de desinteressadas para que aprendamos a lhes dar valor.
- Ah sim, isso lá é verdade. – disse João prontamente.

Ambos ficaram pensativos, refletindo sobre tal revelação. João coçava o queixo, como se tivesse algo a dizer e não soubesse como.

- Deixe de cerimônia, João. Diga logo qual é o problema. – Vadeco o olhava ansioso percebendo a relutância do amigo.
- Eu estava aqui pensando no casamento de vocês. Ela vai trabalhar? Porque o único emprego que eu consigo visualizar para uma arara azul seria o de atração em exposição.
- JAMAIS! Mulher minha não vai ficar por aí se exibindo para qualquer um. Você está louco, João? Nem casei ainda e você já está querendo me arrumar motivo pra divórcio? – Vadeco esbravejava com tanta intensidade que a saliva voava para todos os cantos da sala.
- Calma, calma. Eu imaginei que você não fosse querer isso. O meu ponto é: se ela não vai trabalhar, corre o risco de ficar entediada, aí já viu né. Rotina é o maior veneno para um casamento.
- Ah sim. Já pensei em uma solução para isso. Vamos ter um filho logo depois que nos casarmos. Um bebê resolveria todos os nossos problemas. Ela vai ficar em casa cuidando dele e assim que eu chegar do trabalho, ela estará feliz e realizada. Assim teremos toda disponibilidade do mundo para...er...você sabe, né. Um filho será para a gente um sinônimo de descanso, despreocupação, liberdade – Vadeco erguia mais os braços a cada palavra, como se quisesse alcançar sua noiva no céu afora para desposá-la ali mesmo.

Sua empolgação acabou atingindo João, que levantou estasiado e deu no amigo um longo abraço.

- Bravo, Vadeco, bravo. Realmente, um filho provavelmente diminuiria pela metade o trabalho de vocês e tornaria a rotina muito mais calma. Conserve esse pensamento e vocês terão um grande casamento pela frente, camarada.

Mas não tiveram. Meses depois, João recebeu uma carta de Vadeco com a triste notícia. A arara azul o desonrara antes mesmo que se casassem, traindo-o com um pombo sujo qualquer. E perante tal humilhação, o noivo traído não teve outro remédio senão denunciar o paradeiro da traidora a um caçador de aves.
Assim que acabou de ler a carta, João suspirou fundo e lamentou pelo amigo. Pensava no infortúnio do companheiro com a carta em mãos quando uma enorme ratazana e seu filhote apontaram no portal e cruzaram a sala. João se levantou imediatamente e pôs-se a correr atrás deles, sacudindo a carta no ar. Deram várias voltas pela sala, até que João conseguiu encurralar ambos, mãe e filhote, em um dos cantos do cômodo. Olhando firmemente para os olhos da fêmea, ergueu a mão que segurava a carta, e a desceu rapidamente. Ele depositou o envelope na frente dos dois e falou a eles com uma voz ao mesmo tempo calma e ofegante:

- Querida, filho, leiam isso. É carta do Vadeco para nós. Acreditam que aquele desmiolado queria se casar e ter filhos com uma arara azul? Realmente, como tem gente atarantada nesse mundo.

Um comentário:

Fernanda Berdú disse...

Cada dia que passa você mostra mais intimidade com as palavras, os sentidos, os sentimentos, e tantos outros ingredientes que você adiciona em seu caldeirão, pra depois misturar e transformar em um belo texto. Parabéns! :)
Essa garota é meio orgulho! snif
;)