Se em outras circunstâncias alguém me dissesse que não gostaria de se lembrar de sua encarnação passada, pensaria que esse alguém era maluco. Qualquer criatura adoraria desbravar suas lembranças proibidas e descobrir a causa, quiçá a cura, das suas paranóias. Mas não eu. Não eu, que perdi a vida passada ainda na infância.
Eu, que já vivi na superfície, que já enxerguei o subterrâneo como mero recipiente de restos fecais, tive que me contentar com esses mesmos restos na vida seguinte.
De corredor a rastejante, de desbravador a incapaz, de cachorro a minhoca. Essa foi minha trajetória, essa foi minha queda. E que queda! Transformar um macho conquistador em um verme hermafrodita não passa de puro sarcasmo do acaso.
O acaso tirou de mim minhas patas, meus pêlos e meu pau, mas nada, nada me fazia tanta falta quanto a fuça. Ah, a fuça, aquele saudoso instrumento que transformava o mundo em um enorme sachê. Como dói perder algo que eu nem percebera que era tão importante. Que desalento é sentir toda essa terra com o tato, mas nunca com o olfato.
E o acaso insistia em me perseguir. Quando conseguia esquecer a falta que a fuça me fazia e me concentrava nas banalidades diárias, comer e defecar, a chuva começava. A cada gota que caia na terra, era como se um pêlo meu fosse arrancado pela raiz e, finalmente, quando tudo terminava, estava mais minhoca que nunca. Maldita chuva que já foi bendita um dia. Maldita terra que insistia em acolhê-la, instigando fuças felizes a quilômetros de distância. Maldito de mim, animal sem fuça.
Como enxergar algo bom em tamanha desgraça? Dia após dia me perguntava isso, quando, no final das contas, o cruel e piedoso acaso enviou sua resposta. Fui capturado em uma manhã, enquanto buscava marcas do meu passado impressas na superfície. Fui aprisionado, espremido, espetado e engolido. Perdi os sentidos, e quando voltei à realidade, o universo não passava de um grande pântano de suco gástrico.
No estômago daquela criatura, naquele espaço gosmento e pegajoso, vi restos mortais tão deglutidos e asquerosos que eu nem mesmo poderia identificar do que eram. E foi agonizando em meio àquele antro que parei de maldizer a nova vida que havia me sido imposta. Bendito acaso, que me poupou de sentir o que havia ali com o olfato. Bendito de mim, animal sem fuça.
Carol Rosa
quinta-feira, 22 de março de 2007
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