sábado, 30 de junho de 2007

Ato de caridade

Eu fui a primeira negra-pobre a ir para o espaço. É uma história longa. Começou quando eu estava voltando do trabalho. Vi dois homenzões de terno e óculos escuros me esperando na porta de casa. Como eu já tinha visto isso no filme, sabia como funcionava. Já cheguei de mãos pro alto dizendo que não era alienígena, que haviam pegado a pessoa errada.

- Calma, minha senhora. Viemos apenas convidá-la para ir para o espaço.
- Ora, vão os senhores.

Mas então eles me explicaram que esse espaço não era aquele espaço pra qual a gente manda as pessoas de quem quer se livrar. Esse espaço era o espaço, espaço mesmo, aquele que fica lá em cima.

- E por que é que vocês iam querer mandar uma negra, pobre, de terceiro mundo para o espaço?
- A verdade, minha senhora, é que a NASA precisa se promover. Com essa história de guerra pra lá, guerra pra cá, a imagem do governo americano caiu que nem banana madura. A gente precisa fazer algum tipo de caridade, algo grande, que desvie, quer dizer, chame bastante atenção. Algo como levar uma negra, pobre, de terceiro mundo para o espaço.

É lógico que eu não engoli essa história de caridade. Mas eu já estava acostumada. Tudo que faziam para negro-pobre chamavam de caridade. Meu emprego, dizem, foi uma caridade. Até meu salário mirrado chamavam de caridade. Uma caridade a mais, uma menos não faria diferença. Ou faria. Indo pro espaço eu poderia até largar o meu emprego e me tornar, assim, uma astróloga.

Eu fui. Fui e aproveitei. Fiz tratamento de beleza, treinamento espacial, ganhei macacão laranja igual aos dos bacanas. Foi com essa pinta de astronauta-brasileira que eu apareci nos jornais, na TV, nas revistas e até nos livros de escola dos meus filhos. No começo eles sentiram orgulho de mim. Depois começaram as piadinhas.
- Olha, tem uma negra-pobre indo para o espaço.
- O que foi? O barraco explodiu?

E os comentários maldosos.
- Olha querida, o governo recebeu a minha carta e acatou a sugestão. Tão botando os negros-pobres em foguetes pra jogar de lá de cima.

Jogar de lá de cima. Que absurdo, como o povo era maldoso. Mas deixei que falassem. Eles que se esbaldassem enquanto podiam. Quando eu estivesse lá em cima, no espaço, olharia bem para a câmera e faria apenas um gesto. Um não muito bonito, mas que sem dúvida valeria a pena.

Então a viagem começou. Alguns adeus, botões piscantes e sacudidas depois, lá estava a negra-pobre a caminho do espaço. Olhei pela janela e vi a Terra de longe. Ela era azul, azul, azul, amarela, laranja, vermelha, esfumaçada, BUM. Falha técnica, o foguete explodiu. Entrei na história e no espaço sideral. Parece que quase todo mundo ganhou com isso. Meus filhos receberam uma indenização gorda, o Brasil finalmente ficou famoso e o governo americano desviou, quer dizer, chamou bastante atenção. E nem precisou muito pra isso. Bastou botar uma negra-pobre em um foguete e jogar de lá de cima. É, eu acho que o governo realmente havia recebido a tal carta.

Um comentário:

Unknown disse...

Engraçado, parece que já ouvi essa estória.... E a conta saiu do nosso bolso!